A Ressignificação do Espaço (Tó)

5. A Ressignificação do Espaço

    Igreja, teatro e cidade

 

Assim, abandonando as salas teatrais existentes, usaremos um hangar ou um celeiro qualquer, que reconstruiremos segundo os procedimentos que resultaram na arquitetura de certas igrejas e certos lugares sagrados.

ANTONIN ARTAUD, O Teatro e Seu Duplo, p. 123.

 

Antes de analisarmos a ocupação cênica realizada na igreja Santa Ifigênia, é importante recuperar as razões que nos levaram à utilização de outros espaços, que não o palco italiano, para a representação teatral. A motivação veio, antes de tudo, do tema tratado. Na medida em que falávamos da perda do Paraíso, da expulsão do Jardim do Éden e, por conseguinte, da separação homem/Deus, o espetáculo pretendia fazer um jogo às avessas com o espectador. Ou seja, levá-lo de volta ao território sacro.

Desse modo, a peça, em sua dimensão ficcional, trataria do exílio e do desterro, enquanto o lugar da representação apontaria para o retorno ou o reencontro com o topos sagrado. A ideia, portanto, era criar uma tensão com o conteúdo abordado, e não urna redundância ou ilustração. Por isso mesmo, para criar esse confronto de significações, o local da representação não poderia constituir-se em "espaço neutro" - apesar de, conceitualmente, não acreditarmos na existência de tal categoria.

Por essa razão é que o significado (simbólico, histórico, institucional) do lugar era mais importante que suas possibilidades cênico-arquitetônicas. Abríamos mão de uma arquitetura mais "teatral" em prol do sentido, ou sentidos, que um determinado local pudesse evocar. Daí, o espaço escolhido ser o único possível para aquela encenação.

Em outras palavras, a pretensa neutralidade da "caixa preta" do palco italiano não nos convinha. Necessitávamos, para a fricção de sentidos almejada, um local de representação com força autônoma, que pudesse se colocar em pé de igualdade com o núcleo temático da peça.

Contudo, por que uma cenografia teatral, construída na tradicional "caixa preta" não seria suficiente para alcançar o que desejávamos? Talvez porque tivéssemos a necessidade de um elemento de "realidade" que uma construção cenográfica, por mais verossimilhante que fosse, jamais seria capaz de atingir. O cenário de um templo budista ou sinagoga, realizado com o máximo de exatidão e fidedignidade, não conseguiria superar ou substituir a experiência sensível intrínseca a esses locais. Por isso, mais do que um jogo de representações, buscávamos a concretude do imanente.

A ideia-chave era criar uma zona híbrida, de intersecção, entre o "real" ou a "realidade" do espaço e o "ficcional" ou o "teatral", advindo do roteiro e do espetáculo. Esse terreno intermediário e movediço poderia ser capaz de desestabilizar o espectador e interferir concretamente na sua percepção, afetando, assim, a leitura e recepção da obra.

Seria equivocado, por outro lado, afirmar que nosso intuito fosse o da instauração de um hiper-realismo. Tal juízo seria aplicável se, no desejo de obter o máximo de veracidade para o local da ação proposto pela dramaturgia, transportássemos a peça literalmente até ele. Seria assim, por exemplo, se montássemos Um Mês no Campo, de Turguêniev, ou Tio Vânia, de Tchékhov, numa propriedade rural, ou ainda Barrela, de Plínio Marcos, dentro de uma prisão. Isso não era, de fato, nossa prerrogativa.

É evidente que o espaço de uma igreja se aproximava do universo bíblico sobre o qual trabalhávamos. Porém, se ele materializava o "território sagrado': o conteúdo das cenas lá apresentadas abordava, ao contrário, o "terreno profano ou dessacralizado". O lugar-igreja, na perspectiva ficcional do roteiro, não representava a "Casa de Deus", mas sim o local exterior ao Jardim do Éden, do desterro, do exílio, onde a divindade não mais habitava. Portanto, uma terra sem Deus, ou, na melhor das hipóteses, segundo a definição bíblica, "um solo maldito”: Nesse sentido, 9 trabalho propunha a ressignificação do espaço, contrapondo à sua dimensão "sagrada', institucional e simbolicamente aceita a dimensão "dessacralizada" do roteiro - no que concerne à topografia ficcional nele proposta. Portanto, haveria uma dicotomia entre o "espaço ficcional" (o lugar onde acontece a ação da peça) e o "espaço da representação" (o local físico e arquitetônico onde sucede o espetáculo). Porém, em nosso caso, ambos estariam subordinados à discussão do tema. São autônomos entre si, mas, ao mesmo tempo, dependentes da problemática de que se quer tratar. E é justamente da colisão entre essas categorias de lugar, que as questões da peça se amplificarão ou se iluminarão.

Quanto às necessidades espaciais para a realização de O Paraíso Perdido, cabe fazer um breve histórico das dificuldades enfrentadas para a obtenção do local pretendido. Como desejávamos um assim considerado "espaço sagrado”: fosse por razões institucionais, simbólicas, fosse de crença pessoal daqueles que o frequentam, partimos em busca de edifícios religiosos dos mais variados credos. Visitamos templos budistas, sinagogas, mesquitas, igrejas protestantes e, por fim, católicas. Com exceção dessa última, todas as anteriores, por uma razão ou por outra, negaram-se à possibilidade de receberem uma peça teatral em suas dependências.

Os budistas, que acreditávamos que seriam os mais abertos a tal ideia, foram os mais refratários. Nem se ispuseram a dialogar ou a discutir a proposta. Entre os judeus, após algumas malsucedidas tentativas, conseguimos uma audiência com o rabino Henry Sobel, um dos principais nomes da Congregação Israelita Paulista. Apesar de, pessoalmente, considerar a ideia interessante, julgou que ela poderia encontrar resistências ou objeções dentro da comunidade judaica mais ortodoxa. Além disso, por razões religiosas, o espetáculo não poderia ser apresentado em uma sinagoga às sextas e sábados, o que tornava tal opção ainda mais problemática. Quanto aos muçulmanos, apesar da auspiciosa recepção no Centro Cultural Islâmico e na Sociedade Beneficente Muçulmana de São Paulo, a proposta não obteve boa repercussão. Entre outras razões, havia o fato de que não é permitida a presença de mulheres menstruadas em uma mesquita, o que criaria uma situação constrangedora com possíveis futuras espectadoras. Entre os protestantes, ainda que uma das atrizes fosse filha de pastor, houve forte resistência à discussão da ideia. Rechaçou-se tal possibilidade logo na primeira reunião, e fomos desaconselhados a insistir nela. Por fim, restaram os católicos.

Existia uma impressão, dentro do grupo, de que a Igreja Católica seria a mais impermeável a uma proposição dessa natureza. Daí a sensação de desânimo que cercou a audiência com dom Paulo Evaristo Arns, então cardeal arcebispo de São Paulo. Éramos movidos quase que apenas pela obrigação burocrática de esgotarmos todas as possibilidades. Contudo, para nossa surpresa, dom Paulo relatou-nos o quanto havia se impressionado, em sua juventude, com um espetáculo que assistiu no interior de uma catedral em Paris. Em seguida, afirmou que não só apoiava a ideia, como se dispunha a escrever uma carta recomendando o projeto. Porém, acrescentou que, por razões legais, lhe era vetado obrigar um pároco a receber o espetáculo, e que podia, no máximo, manifestar sua aprovação. Portanto, cabia ao grupo convencer um padre a abrigar a peça dentro de sua igreja.

Partimos, então, para uma nova maratona. Visitamos quase todas as igrejas de São Paulo, porém, sem nenhum sucesso, pois os padres se mostravam avessos a tal possibilidade. Estávamos a ponto de desistir, vivendo á mais grave crise do processo - justamente pela inexistência de um local para a estreia - quando encontramos padre Paulo Homero Gozzi, pároco da igreja Santa Ifigênia. Como grande apreciador de teatro e de música, ele concordou imediatamente em receber o espetáculo. Pediu-nos apenas que aguardássemos alguns dias para que os membros da comunidade fossem avisados. De qualquer forma, garantia o início dos ensaios para a semana seguinte, exatamente a partir do dia 12 de outubro de 1992.

Evidentemente, a notícia de que em poucos dias estaríamos ensaiando in situ provocou a superação da crise interna do grupo, crise que quase pôs em risco a continuidade do trabalho. Como um passe de mágica, um novo ânimo tomou conta de todos.

Passemos, então, à discussão sobre a entrada do grupo dentro do espaço e as questões relativas ao seu uso cênico. Para nossa surpresa, o início do trabalho na igreja foi bastante desalentador. Não em relação ao padre ou à comunidade paroquial - que nos receberam de forma generosa e aberta - mas ao clima reinante nos próprios ensaios.

Aquele local, por sua atmosfera antiga e religiosa, causava-nos constrangimento. Ninguém conseguia falar alto e os atores tinham receio de tocar nos objetos e, até mesmo, de andar livremente pelo espaço. A sensação era de desconforto e inibição. Parecia contraditório que o lugar que tanto ansiávamos, nos criasse limitações aparentemente insuperáveis. Enfrentávamos, de forma inesperada, uma situação paradoxal em relação ao espaço.

Cabe notar que tal constrangimento advinha do espaço em si, ou de nossa relação com ele, e não por motivo de algum fator externo. Como a igreja Santa Ifigênia encerrava suas atividades habitualmente às 19h30, permanecíamos ensaiando lá das 20h00 até a madrugada, por volta das 2h00 ou 3h00. A região do entorno, por se tratar de zona comercial, ficava inteiramente silenciosa e tranquila durante a noite. Os padres ou os paroquianos também nunca apareciam durante os ensaios, o que, se ocorresse, poderia justificar certa inibição de nossa parte. Em outras palavras, ninguém nos vigiava ou controlava. Nem mesmo a mudança do horário de ensaio, que se transferiu da manhã para a noite - o que, com certeza, afetava o relógio biológico dos atores e os seus ciclos de sono e vigília - conseguia explicar o tônus baixo e a falta de energia presentes no trabalho.

Na verdade, as razões eram outras. Estávamos sofrendo a influência do ambiente físico da igreja (pouca luminosidade, cheiro de velas, dimensão arquitetônica grandiosa, local frio etc.) e do seu significado cultural, simbólico e institucional (local religioso, marcado pela atitude devocional e contemplativa; ambiente solene e de respeito, em que centenas de católicos exercem sua fé e praticam seus rituais). Além disso, o espaço evocava, naturalmente, nossas próprias lembranças pessoais, quer como praticantes (ou ex-praticantes), quer como convidados que fôramos para alguma celebração (primeira comunhão, casamentos, missas de sétimo dia etc.). Quem, como criança, não se lembrava de ter sido reprimido pelos pais para fazer silêncio ou ficar quieto em alguma dessas ocasiões de culto? Tudo isso somado, ainda que ocorresse de forma pouco consciente, provocava aquela sensação de desconforto e retração.

Não bastassem essas dificuldades, enfrentávamos ainda um problema suplementar. A proximidade do fim de ano, data pouco propícia para a realização de estreias, aliada aos indícios de cansaço apresentados pelo grupo e ao desejo inadiável de finalização do projeto, fez com que acordássemos o início da temporada para a primeira semana de novembro. Ou seja, teríamos cerca de vinte dias, descontadas as folgas, para nos apropriar e adaptar a peça dentro da igreja. Se se tratasse de uma montagem em palco italiano talvez esse tempo fosse suficiente. Por exemplo, o período que habitualmente é concedido a produções desse tipo, para arranjos técnicos e ensaios gerais, é de dez a quinze dias. Porém, o caso aqui era outro - ainda mais se considerarmos a inexperiência do grupo em relação a criações site specijic.

Portanto, além dos obstáculos mencionados, somava-se a pressão da data de estreia. Sem consciência da armadilha que criamos para nós mesmos, tal opção também contradizia os princípios norteadores do início do processo de pesquisa. Pois, naquele momento, havíamos defendido a inexistência de prazos inflexíveis para o término da investigação, fosse ela científica ou artística. Porém, agora, paradoxalmente, engessávamos o fim do processo em limites temporais rígidos. Desnecessário ressaltar que, como resultado direto de tal precipitação, faltou amadurecimento cênico ao trabalho, no momento de sua estreia. Contudo, o primeiro problema a ser vencido era a paralisia criativa que o espaço provocava nos atores. Várias tentativas foram feitas nesse sentido: exercícios de exploração espacial com os olhos vendados; canto coral com acompanhamento do órgão da igreja; danças circulares e sagradas; e ainda, improvisações específicas voltadas para alguns "nichos" (confessionário, púlpito etc.) e para alguns objetos (os bancos da igreja, as portas laterais e centrais etc.). Dessa forma, pouco a pouco, conseguimos que os atores se soltassem e ganhassem intimidade com o ambiente. Essa estratégia de apropriação consumiu quase dez dias e, somente após esse período, foi possível observar os atores correndo dentro da igreja, projetando a voz, gritando, se jogando no chão, subindo nos bancos e explorando cada canto daquele lugar com liberdade e desenvoltura.

Antes que tal cumplicidade com o espaço fosse conquistada, tornava-se difícil, ou pouco eficaz, a adaptação do roteiro àquela arquitetura tão peculiar. É claro que, durante esse período inicial, experimentamos uma ou outra cena em áreas específicas da igreja. Porém, o trabalho de espacialização e marcação só progrediu após essa etapa. Cheguei também a realizar, ainda nessa primeira fase, uma série de esboços, em planta baixa, do possível mapeamento das cenas e do percurso do público ali dentro. A ideia era criar um conceito tanto para a distribuição espacial das cenas como para o deslocamento dos espectadores.

Tomando como referência o teatro medieval, pretendíamos construir um "drama de estações" contemporâneo. Como uma espécie de Paixão, não de Cristo, mas do Homem, o espetáculo deveria assumir um caráter processional, com a plateia acompanhando as cenas em pé, e se deslocando de um ponto a outro dentro da igreja. Nesse sentido, foram planejados dois eixos de "localização geográfica": o lugar das cenas e o lugar do público.

Quanto ao primeiro eixo, a ideia era conseguir, no início da peça, a máxima aproximação ator/espectador, quase como que impedindo esse último de perceber a totalidade do ambiente. Já no final do espetáculo, haveria, ao contrário, o máximo distanciamento das cenas em relação à plateia, para que ela, enfim, recuperasse a visão integral do espaço.

Outro aspecto, ainda, era a conjugação do elemento humano e divino, com o intuito de encontrar uma solução espacial para esse duplo. A ideia projetada foi que, no epílogo, um conjunto de pessoas cantasse no alto do coro, como que flutuando na parte superior da nave da igreja. O humano pareceria, então, ter se elevado. Em contraposição, a figura celestial do anjo desceria por meio de uma corda, também do alto do coro, até atingir o chão. Ou seja, haveria a humanização de um ser divino. Tais imagens encontrar-se-iam sobrepostas, sendo observadas simultaneamente.

Em relação ao eixo espacial do público, o plano era que ele se iniciasse fora do interior da igreja, numa espécie de antessala, para só depois, então, adentrar o recinto religioso. Após uma longa deambulação por diferentes áreas, que incluiriam as naves centrais e laterais, o fundo da igreja e, até mesmo, uma escada íngreme que levava ao coro, os espectadores seriam conduzidos ao altar, e lá permaneceriam até o fim do espetáculo. Ou seja, a plateia percorreria uma trajetória que se iniciaria no espaço menos sacralizado (a antessala) até o mais sacralizado (o altar). Simbolicamente, seria como se o público, ao final, reencontrasse ou recuperasse a dimensão do sagrado.

Como parte desse eixo, haveria um momento, no meio da peça, onde seria negado, pela primeira vez, o acesso dos espectadores a um determinado local. Na abertura do bloco Desobediência, o Anjo Caído se revoltaria contra o Criador e correria em direção ao altar. Aí então, assim que ele passasse pelo corredor central, os bancos seriam empurrados, um em direção ao outro, fechando a passagem e impedindo a plateia de acompanhar o Anjo até o altar. Ou seja, no exato instante da desobediência de Adão e Eva, ocorreria, em termos do uso espacial, a maior ruptura entre o humano e o divino, por meio da construção dessa barreira de bancos.

Assim, como nesse exemplo, pretendíamos criar sentidos e significações no espaço, tanto pela localização das cenas em si quanto pelo lugar onde o público ocupava a cada momento. Encontrado o conceito espacial, orientador do mapeamento topográfico de atores e espectadores, a investigação cênica poderia ter prosseguimento, buscando, então, o aprimoramento das marcações e da relação dos atores com os móveis e objetos ali presentes. Infelizmente, não houve tempo hábil para realizar tal aprofundamento antes da estreia. Pois, se na primeira semana havíamos lutado contra a inibição que o lugar-igreja provocava, o período restante foi utilizado para fixar o percurso espacial do roteiro e a sua materialização in loco.

Foi nesse momento, por exemplo, que a personagem Anjo Caído ganhou a dimensão de protagonista, já que percebemos a necessidade de haver um condutor para o público ali dentro. Sob nosso ponto de vista, seria nocivo ao diálogo entre o conteúdo temático e a ressignificação da arquitetura, se o público, ao entrar na igreja, se sentasse nos bancos como quem assiste à missa. Pretendíamos, justamente, subverter a relação espacial convencionalmente estabelecida entre fiéis e sacerdotes. Para isso, então, precisaríamos de um indicador ou guia que pudesse propor à plateia uma forma diferente de permanecer dentro da igreja. Daí a solução de transformar a personagem Anjo nesse condutor.

Dada a complexidade do trabalho e o reduzido tempo disponível, foi somente várias semanas após a estreia que conseguimos concluir o processo de investigação espacial. Isso sem mencionar o amadurecimento das interpretações, o refinamento na construção dos papéis e, principalmente, a apropriação do texto.

Em relação a esse último aspecto, enfrentamos ainda um desafio suplementar. Além das constantes mudanças que o roteiro sofria, fosse por razões intrínsecas a ele, fosse por necessidades decorrentes de sua adaptação à arquitetura da igreja, surgiu um problema inesperado: a acústica do lugar. Qualquer texto falado era prejudicado pelo efeito do eco, que embaralhava a compreensão do que era dito. Tal limitação obrigou os atores a encontrar outra rítmica de fala, nesse caso mais pausado que a normal, e a redobrar o cuidado com a dicção.

Contudo, demoramos várias semanas para apreender esses novos mecanismos de projeção de voz e de elocução, o que comprometeu o' entendimento do texto na fase inicial da temporada. Infelizmente, mesmo depois, o máximo que logramos foi atenuar o problema, mas não resolvê-lo integralmente.

A partir da experiência do uso do espaço na igreja, foi possível identificar algumas das principais interferências que a utilização de um "local específico" provoca. Destacamos três áreas de intersecção onde isso aparece de forma mais acentuada:

 

•        A relação espaço/texto: o espaço afeta a dramaturgia, que tem de ser reescrita e adaptada às condições arquitetônicas específicas. Por exemplo, novos textos devem ser criados para que se possa efetuar o deslocamento de uma determinada personagem - e/ou do público - de uma área a outra no local de representação. Tal necessidade, no caso de O Paraíso Perdido, provocou o acréscimo de várias falas ao Anjo Caído, já que era ele o condutor dos espectadores na igreja. Às vezes, na tentativa de dialogar com a estrutura espacial do edifício, cenas são mudadas de ordem, enquanto outras, já descartadas, retomam. Além disso, a fim de tirar proveito de um determinado nicho arquitetônico que possa ser útil para as questões tratadas no espetáculo, a dramaturgia necessitará escrever um material inédito (como foi o caso do monólogo do Anjo Caído na antessala da igreja). Por fim, em função da atmosfera proporcionada pelo local, o roteiro poderá ajustar-se a ela, atenuando elementos que não precisariam ser realçados, ou, ao contrário, reforçando aspectos que ficaram fragilizados ou foram "engolidos" pelo lugar.

 

•             A relação espaço/ator: o espaço afeta a interpretação, ao proporcionar ao ator uma situação atmosférica e objetual específica, diferente daquela construída cenograficamente. A entrada no local escolhido pode ser inibidora para os intérpretes, fazendo-se necessária a criação de estratégias para a superação dessa timidez, tais como exercícios e improvisações direcionadas. Por outro lado, a experiência desestabilizadora que o "espaço específico" provoca, pode também ser aproveitada a favor das interpretações. Por exemplo, o bloco Retorno, cujo eixo era o sentimento da nostalgia do sagrado, foi bastante auxiliado pela arquitetura de inspiração gótica da igreja Santa Ifigênia, Tal ambiência, sem dúvida, favoreceu os atores a encontrarem o referido sentimento. Ou seja, construções arquitetônicas podem facilitar ou induzir construções emocionais. Por outro lado, a presença física do ator no espaço e sua relação com os objetos ali presentes também promove o redimensionamento ou mesmo a redescoberta do lugar. Vários foram os depoimentos de espectadores que, apesar de já conhecerem a igreja Santa Ifigênia, se surpreenderam com seu tamanho, beleza ou acústica. Nesse sentido, se o espaço afeta o ator, também este afeta o espaço, humanizando-o e teatralizando-o simultaneamente. O corpo do intérprete ressignifica o corpo arquitetônico. E vice-versa.

 

·A relação espaço/público: o espaço afeta a recepção dos espectadores, interferindo na sua leitura da obra, pois ele evoca as memórias pessoais, os condicionamentos culturais e, mesmo, as projeções do espectador em relação àquele local. A experiência site specific tem a capacidade também de provocar todos os sentidos da plateia, já que descondiciona as referências teatrais usuais. Isso ocorre devido à presença de diferentes parâmetros arquitetônicos e visuais; à modificação na percepção sonora e auditiva (o eco dentro da igreja que, se por um lado atrapalhava a voz falada, por outro, ajudava o canto e a música); à existência de odores característicos (o cheiro de vela); às variações de temperatura em um ambiente não climatizado (o mármore e o piso de cimento acentuavam a sensação de frio); ao contato físico com texturas e objetos, de natureza diferente dos encontrados em salas de espetáculo, além da exposição mais acentuada à presença corporal dos outros espectadores. O espaço também carrega uma história - conhecida ou não, mas que se encontra inscrita em suas paredes - e uma carga emocional específica, que dialogarão com a subjetividade de cada indivíduo da plateia. Além disso, a contingência do deslocamento, seja para poder ver uma cena, seja para adquirir um ângulo melhor de visão, ou simplesmente modificá-lo, rompe com a passividade física do "estar sentado”: estimulando um major engajamento corporal na recepção. Tudo isso somado promove uma experiência imersiva para o espectador, acentuando o caráter vivencial e não apenas contemplativo. Rompe-se a separação convencional espetáculo/público, já que tudo é cena, é presença, e todos, inclusive os atores, são também espectadores. Além disso, em peças de caráter processional, a "existência física" da plateia e a presença concreta dos corpos dos espectadores obrigam a reestruturação de marcações, uma vez que aparecem problemas de deslocamento e de visibilidade, difíceis de serem previstos. Mesmo a definição da quantidade de público por sessão, ainda que possa ser estimada, necessita ser testada concretamente.

 

(...)

 

ARAÚJO, Antônio. A gênese da Vertigem: o processo de criação de o Paraíso Perdido. São Paulo: Perspectiva: Fapesp, 2011. (p.165-176)